Gerenciar a inspiração: uma prática em 5 atos

Ronald T. Kellogg no livro The Psychology of Writing, diz que não criamos apenas quando sentamos para escrever. A escrita, como toda arte criativa, é um processo que acontece muito além do papel em branco.

A inspiração, segundo Kellogg, não aparece do nada. Ela é o acúmulo de pequenas peças que se encaixam silenciosamente e de modo desordenado e esse não é um processo que pode ser domado. O que podemos fazer é criar pequenas rotinas para que o acaso flua da melhor maneira possível. Cada um tem uma forma de lidar com essa incerteza. A minha maneira de gerenciar a inspiração é através do que chamo de 5 atos.

Ato 1 – Inspiração é ação

Ray Bradbury dizia:

Minha maior inspiração é terminar o que eu comecei a escrever para poder começar escrever outra coisa.

Isso significa que uma das formas mais eficientes para que a inspiração continue aparecendo é não esperar o momento certo para criar. No caso da escrita, tudo pode ser resumido a um jogo de tentativa e erro e quem tenta mais tem mais chances de acertar.

Escrever de modo regular e com um horizonte de término é essencial para evitar os latifúndios de textos. Um latifúndio textual é um volume absurdo de começos sem fim (ou de fins sem começos) que geram ansiedade e frustração. É preciso acreditar que certos textos precisam terminar – mesmo que incompletos, mesmo que imperfeitos. Acabar um texto é o melhor elixir para se sentir confiante e retornar ao papel em branco para um novo trabalho.

Ato 2 – A inspiração é uma pergunta, não uma resposta

Garcia Márquez teve a ideia de Cem de Solidão enquanto dirigia. J. R. R. Tolkien visualizou a criatura de pés peludos chamada Hobbit enquanto corrigia as provas de seus alunos. Tolstoy viu Anna Karenina num cotovelo de uma mulher apoiada numa sacada. O que eles possuem em comum? Foram autores que trataram a inspiração como uma pergunta: “o que aconteceria se essa personagem fizesse isso?”

A inspiração é como uma notificação da realidade para algo ao seu redor precisando de resposta. A definição da resposta quase sempre é irrelevante, mas a pergunta é determinantemente crucial.

Ato 3 – A inspiração é círculo, não linha reta

Para usar mais um exemplo de autor conhecido, Isaac Asimov dizia que não escrevia livros independentes, mas um grande livro dividido em diferentes partes. Ele escreveu ao todo 204 livros. Alguns bons, outros nem tanto, mas o exemplo de Asimov ilustra bem a ideia de que a escrita não precisa ser sempre uma flecha disparada num alvo fixo. Disparar várias flechas é uma ótima maneira de acertas alvos inusitados e de descobrir caminhos até então desconhecidos.

Assim, a inspiração deixa de ser um acontecimento aleatório e passa a ser consequência de um processo que não acaba quando o texto é finalizado.

Ato 4 – Inspiração é confiança

Nada garante que um texto vá funcionar. Nada nos protege completamente do fracasso, do cansaço ou do desinteresse (nosso ou do leitor). Nada na vida de um autor caminha pela vereda da certeza. O que garante que o trabalho criativo não afunde num pântano de inseguranças é a confiança.

É preciso confiar que o texto se torne, ao longo da escrita, em algo com vida e intensões próprias. É preciso deixar que a palavra faça o seu trabalho, que ela encontre o peso e o tom certo, que saia da penumbra e se torne uma coisa que existe por si só. Não importa como isso acontece, o que precisamos saber é que a inspiração é um pulo do penhasco sem ver ao certo o que há lá em baixo.

Ato 5 – Inspiração é atenção

Podemos escrever sobre banalidades (Marcel Proust e as memórias burguesas, Emil Cioran e os pensamentos soltos) ou sobre acontecimentos incríveis (Svetlana Alexijevich e o desastre de Chernobyl, Euclides da Cunha e a campanha de Canudos). O que importa é que tanto o trivial quanto o extraordinário só alcançam o status de trabalho e arte quando observamos as coisas com olhos atentos.

Tudo pode ser inspiração. O mundo é um banquete de dor, euforia, alegria ou desespero – tudo depende de como vemos a realidade e de como selecionamos nos símbolos ao redor o sentimento que desejamos expressar.

A escrita é, antes de qualquer coisa, uma arte de observação. É absolutamente errada a ideia de que uma pessoa inspirada encontra coisas novas apenas dentro de si mesma. A inspiração apresenta-se sempre como um movimento dualístico entre observador e coisa observada. Escrever é apenas (e não somente) mostrar aos outros aquilo que vemos.


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