Conto parte do livro O coração de um animal assustado, editora Telha (no prelo).
O homem coloca a criança sobre o trilho do trem e espera. A criança está enrolada numa grossa manta de lã e os fiapos atraem a primeira neve da manhã, uma neve úmida, translúcida e grudenta. A precisão do tempo do trem dá ao homem uma felicidade estranha.
Faz tempo que o homem não vê o sol, somente o trem se apresenta diariamente como um rasgo na paisagem branca. O inverno prolongado e sem abelhas pede a ele que fique em casa e pense. Pense no que fará quando o verão chegar, pense em como arranjará um novo emprego e em como irá alimentar a criança até que o verão chegue.
A neve já deveria ter esvanecido, os campos já deveriam estar no cio e a mulher já deveria ter voltado da cidade, onde fora trabalhar como ama para uma família com muitos sobrenomes. Quando a mulher voltar, pensa o homem, digo que a criança morreu de gripe, que a lenha e os óleos não foram suficientes, mostro-lhe a cova, as flores sobre o montinho de terra e tudo seguirá o curso normal do tempo. Outro verão virá e com ele outra criança.
Essa certeza lhe acende uma felicidade grotesca, uma maldade metálica e silenciosa como a chegada de uma boa notícia depois de uma tragédia. É preciso que alguma coisa ruim aconteça para que a sorte volte, pensa o homem.
O trem passa vagão por vagão. London, Midland and Scottish Railway. No último carro está um homem que fuma ancorado no gradil. Apequena-se e some. O homem sai dos arbustos e corre até o local onde a criança dormia. Sobre o trilho ainda quente a manta de lã exibe apenas o verso vazio do embrulho. O homem caminha de volta para a cidade com a manta dobrada sobre o ombro. Na cidade agora vive uma criança fina, translúcida e quente. Uma criança de verão.
Deixe um comentário